Diário de Notícias Madeira
Funchal capital da Poesia Experimental
É um desperdício se não houver esse investimento. Herberto Hélder e António Aragão deixaram legado importante.
O MUDAS.Museu de Arte Contemporânea da Madeira apresentará ao público, no próximo dia 16 de Dezembro, a exposição “Alvoro” da autoria do artista plástico madeirense António Barros. Este projecto, que se constitui como a primeira exposição individual deste autor na Região, residente em Coimbra, contará com o comissariado de Isabel Santa Clara e textos de Tolentino Mendonça. Uma proposta que integra escultura, objectos, fotografia, vídeo e instalação. Ao DIÁRIO o artista defende que a cidade do Funchal poderia ser a cidade sede da Poesia Experimental.
Porquê Alvoro? A grande parte das criações que fabrico e dos textos que escrevo faço precisamente nessa altura. O meu calendário de gestação criativo e artístico é feito na alvorada. Esse desafio do Alvoro é um contributo no sentido de termos consciência que temos de ter soltura e de liberdade, e essa consciência de estarmos preparados para a cada momento começar, recomeçar, começando, e ter uma vitalidade das vivênciações, de forma conjugada e constante.
Utiliza nas criações o luto e a resolução do luto. Porquê essa opção? Quem estudou o Winnicott percebe que a consciência que a criança tem é perceber que não faz mais parte do corpo da mãe. A criança, recém-nascida, tem a consciência que é parte integrante do corpo da mãe. Quando se apercebe que não acontece, faz o primeiro luto. No meu percurso de vida venho construindo objectivos transitivos para resolver os lutos. Algumas vezes temos a capacidade para resolvermos esse lutos, outras não. O meu trabalho é uma elegia à obra do Winnicott, mas uma elegia à capacidade de resolver o luto e ter a tal capacidade de recomeçar uma nova vida
Balsamar é uma peça referência que criou. Gostava que ficasse por cá? É a terceira vez que é apresentada. A primeira foi no Museu de Água, em Coimbra. Sim, claro que gostava que ficasse. Em principio irá ficar.
No Mudas? Sim. Está em estudo mas ficará como parte integrante da colecção do Museu Arte Contemporânea.
Funchal daria uma cidade sede da Poesia Experimental? Com certeza. Teria consequências bem interessantes. É um desperdício se não houver esse investimento, porque na cultura literária desta geografia temos nomes fundamentais na gestação da poesia experimental, como foi o Herberto Hélder e António Aragão. Depois teve continuidade, que não se esgota nesses nomes, que foram fundacionais da consciência e da cultura da poesia experimental.
Seria uma espécie de homenagem? Também, mas não ficaríamos pelas homenagens, porque parece o fim da linha. Seria um Alvoro. Seria revitalizar e uma visibilidade a todo um trabalho que foi desenvolvido por António Aragão e Herberto Hélder.
O que é necessário para que isso aconteça? Determinação.
De quem? De quem tiver autoridade e dos próprios cidadãos que se podem organizar nesse sentido. A ideia que o poder político é que tem de gerar e gerir e conduzir todos os processos, não é propriamente conveniente.
António Barros poderia ser o rosto dinamizador desse movimento? Daria... como tenho feito sempre, o meu contributo, mas existem pessoas mais vocacionadas e legitimadas para isso, porque são cá residentes.
Além de António Aragão e Herberto Hélder, vê mais alguém com potencial na poesia experimental? Uma das exposições que fiz na Região foi em comunhão com António Dantas que tem uma obra muito interessante nesta territorialidade. Existem outros, como Raul Albuquerque, que não sendo de cá, tem feito um trabalho muito interessante. Curiosamente ele é de Coimbra, reside cá. Eu sou de cá, resido em Coimbra, mas um artista é aquele que não tem rédeas nem balizamentos nem ter essas fronteiras tão severas.
Para crescer enquanto artista não precisamos de sair da ilha? Claro que não. Até é um privilégio ter esta incubadora de criação.
Mas teve de sair. Porquê essa opção? Fi-lo para fazer os estudos que precisava fazer, porque não havia nenhuma faculdade de medicina na Madeira. Fiz esse percurso nas ciências da saúde. Uma das áreas que me interessava era a formação e sensibilização para os domínios sensoriais que as áreas da arte também trabalham.
Já o ouvi dizer que esta sociedade respeita mais um médico que um artista. Optou por ser artista em vez de médico... É preciso ser corajoso. Uma das condições para ser artista é ser corajoso, ser resiliente, determinado e ter grandes convicções. Há que ser pessoa e ter dimensão de cidadania. A arte que trabalho é de grande compromisso sociológico...
E de crítica política? Também.
Esta geração deveria pintar os bigodes de Gioconda? Esta e as que vierem a seguir. O José Ernesto Sousa dizia isso para a minha geração. Eu recebi esse legado e transmito para a geração seguinte que provavelmente transmitirá a outras.
Porquê esse desafio? Há que ter uma vida activa e dinâmica. A ousadia e a irreverência são fundamentais para a saúde mental.
Esta geração não tem essas qualidades? Há quem tenha, mas há também quem não tenha. É um convite, um estimulo e o desafio à geração presente. Não é uma avaliação.
Há vários trabalhos que assina sobre a saída de valores, uma crítica política incisiva... Sim, inclusivamente no domínio videográfico comprometido com a arte sociológica e uma análise crítica aos tempos de hoje que não se esgotam nas peças presentes.
Porquê a escolha de Tolentino Mendonça para participar nesta exposição? Curiosamente a escolha foi de Isabel Santa Clara, a curadora desta exposição e que propôs que o catalógo tivesse um texto dela e de José Tolentino Mendonça, que fiquei agradado. Não tem qualquer compromisso com o enquadramento religioso que tem, e tenho todo o respeito por todas as religiões, desde que defendam o principio da humanidade e dos valores de civilização. Gosto da pessoa, das suas inquietações. Gosto disso.
Seguir-se-ão outros projectos? Tenho uma exposição em Coimbra, no Museu da Água, e estou a preparar uma exposição em Cáceres, Espanha. Este projecto é a conjugação de três museus.
in Diário de Notícias da Madeira, 15 de Dezembro de 2017